
Tay King estava nervoso.
Ele pertencia ao mundo Arcanos, um lugar escondido do nosso por um véu, onde a magia ainda existia e era toxica para os normais (humanos). Tay era um feiticeiro e havia se envolvido em muitas aventuras extremamente perigosas, quase o matando muitas vezes. Mesmo assim ele nunca se sentiu tão apreensivo quanto agora.
O motivo para seu nervosismo era Phan Kyn, o seu colega de quarto e normal. Na verdade, o motivo havia sido a mensagem de texto que Phan havia enviado uma semana atrás, insistindo para que ele o acompanhasse na comemoração de ano novo na casa dos Kyn, pois segundo Phan, não faria bem e nem traria boa sorte Tay passar a comemoração sozinho no apartamento, uma vez que para os arcanianos a virada de ano (Chamada de Mudança de Ciclo) já havia passado, onde os arcanianos iam para a cidade sagrada de Akakor e davam oferendas aos deuses arcanianos e depois iniciavam uma comemoração que ia até o dia seguinte.
— Porque não diz a ele que você não quer ir? — Blay Blood, o amigo vampiro de Tay, indagou enquanto desciam os degraus da Academia Preparatória Rhaverlly, no Bund, Xangai.
Tay parou nos degraus e encarou os raios de sol pálidos que iluminavam o rio Huangpu. O inverno havia coberto o céu com nuvens espessas e cinzentas, um nevoeiro pegajoso havia se instalado nas ruas e a noite flocos de neve rodopiam céu abaixo, o vento era pouco, mas o frio ainda conseguia penetrar nas roupas pretas e grossas de Tay e arrepiar sua pele ate doer.
— Não posso fazer isso, ele insistiu e eu não quero simplesmente dizer não para ele, depois da forma como o tratei e todo o perigo que ele correu por minha causa… eu quero retribuir.
— Você só quer retribuir ou quer que ele se apaixone por você? — Goof Muray, o feérico de cabelos e olhos azuis, falou enquanto apoiava um braço no ombro de Tay.
— Deixe de falar besteiras. — Tay gruiu e retirou o braço do amigo do seu ombro e voltou a descer os degraus.
— Você ficou bastante irritado com palavras que considera besteiras, Tay. — Ming Saraw, o elfo de chifres cônicos que brotavam por entre os cabelos prateados e compridos, riu. Ele vinha descendo logo atrás.
Os Herdeiros Sombrios, formado por aquele grupo de quatro rapazes arcanianos, estavam juntos a muitos anos, e dividiam aventuras, descobertas e segredos, mas Tay sentia receio de compartilhar com eles o que sentia por Phan. No passado Tay tinha um forte preconceito contra normais, o que o fez tratar Phan de forma extremamente rude, e mesmo que o normal tenha ariscado a sua vida para salvar Tay e o mundo de um Senhor das Sombras, o arcaniano achava que Phan jamais o veria mais que um amigo.
— Tay, qual o problema de ir com Phan? — Blay perguntou quando chegaram aos pés da longa escadaria.
— Ele está muito ocupado por causa do curso de medicina e não tem tido tempo de visitar os pais, então ele parece muito animado com esse dia, pois verá os pais e as irmãs, não quero estragar as coisas fazendo ou falando algo errado. — Aquilo era difícil de admitir, mas se havia alguém que poderia ajuda-lo era Blay, o que sempre dava bons conselhos naquele grupo.
— Fico feliz que esteja se preocupando assim com Phan. — O vampiro abriu um sorriso luminoso. — Bem, você não vai estragar nada, apenas confie em si mesmo e seja educado, pronto.
— Então você quer dizer para ele não ser ele mesmo! — Goof gritou ao passar por eles correndo e rindo, mas antes que Tay pudesse mandar ele enfiar aquela língua em um lugar o feérico se teletransportou.
— Filho de uma… — Tay resmungou.
— Não ligue para ele, vai dar tudo certo. — Blay falou firmemente.

Tay se encarou pela quinta vez no espelho de corpo todo, pregado a parede com magia ao lado da porta do seu quarto de paredes pretas. Ele estava indeciso se o vermelho escuro daquela roupa social com um colete dourado era bom o bastante para a noite. Ele nunca havia participado de uma comemoração de ano novo e temia que pudesse estragar a noite dos Kyn, mas por Phan ele estaria disposto a fazer o impossível para que a comemoração fosse agradável.
Ele olhou, pelo reflexo do espelho, o presente dourado em cima da mesa com um laço branco em cima da cama. Blay havia lhe ajudado com a compra naquela tarde.
— Você está incrível. — Phan Kyn surgiu na entrada do quarto, usava roupas sociais caramelo e estava lindo. Tay sentiu uma avassaladora vontade de beija-lo, mas decidiu que o melhor era ficar na sua, não queria estragar a amizade deles com sentimentos unilaterais.
— Devo dizer o mesmo sobre você, quem esta tentando impressionar? — O feiticeiro ergueu as sobrancelhas, mas Phan apenas riu e deu um tapa leve em seu ombro.
— Vamos logo, ou chegaremos atrasados, o restante da família já chegou lá. — Phan mostrou o seu celular na outra mão, onde havia uma mensagem de texto de sua mãe, mas Tay não teve tempo de ler, o normal enfiou o celular no bolso da calça social.
Enquanto seguia Phan para fora do apartamento, Tay ficou pensando quantas pessoas participariam da noite. Phan havia comentado que seus parentes viriam de Jiaxing e estavam hospedados em um hotel, mas passariam a noite na casa dos Kyn.
Quando chegaram ao saguão do prédio Tay não conseguia parar de pensar se os outros membros da família de Phan não gostariam dele como o Sr. Kyn. Ele teria de dar tudo de si, pois se a família de Phan o desaprovasse, seria mais difícil Tay ter, um dia, a chance de ser namorado de Phan.
Mas Tay afastou esses pensamentos por alguns minutos enquanto ajudava Phan a entrar no táxi (Tay preferia ir de moto, mas a medida que o sol ia sumindo no horizonte enevoado o frio ficava mais intenso), pois Phan estava levando uma travessa de Nian gao, que era um bolo de arroz glutinoso.
A medida que o táxi seguia pelas ruas de Xangai, o arcaniano constatou que nem mesmo o frio era capaz de acabar com o animo dos normais. As ruas estavam cheias de veículos e pedestres, vermelho e dourado disputava com o branco do nevoeiro ralo que se espalhava pelas ruas, iluminado ocasionalmente por fogos de artificio.
Quando finalmente chegaram diante da casa dos Kyn, Tay pensou seriamente em não descer do carro, mas ele precisou sair, pegar a travessa das mãos de Phan, esperar o normal descer, entrega-lo o objeto novamente e então pegar seu presente no banco e fechar a porta. Tay encarou a cara dos Kyn com Phan ao seu lado, mesmo dali de fora era possível ouvir vozes animadas lá dentro. Em algum lugar próximo dali fogos-de-artificio estavam sendo estourados, iluminando as nuvens.
— Vamos entrar ou congelaremos. — Phan indicou o portão com o queixo — Abra para mim, por favor.
Tay abriu o portão com um estalar de dedos e seguiu Phan até a porta da frente. Tay apertou a campainha e imediatamente, como se já os estivem esperando, a porta foi aberta, lançando luz dourada para a noite. Era a Sra. e Sr. Kyn. A mulher vestia um belo vestido tubinho vermelho com um coelho dourado bordado, já o Sr. Kyn estava com uma blusa social vermelho-escuro e suspensórios brancos, seu olhar gelado estava direcionado a Tay.
— Bem vindos! Quem bom que chegaram, me dê isso aqui querido, vou colocar na mesa. — A Sra. Kyn, animada e sorridente, pegou a travessa de Phan e afastou-se da porta. — Entrem!
Phan deu um abraço no pai, que sorriu para ele, mas ao cumprimentar Tay a expressão sumiu rapidamente, mesmo quando Tay lhe deu o presente. Por Phan, Tay prometeu a si mesmo que não se abalaria com aquilo. Enquanto ele fechava a porta da frente pensava em quantas pessoas que não gostava dele teve de aturar em festas e reuniões, aquela não seria a primeira vez, então seria descarado como sempre era e fingiria que nada estava acontecendo.
Ao passarem pela mesa de jantar o feiticeiro ficou admirado com a quantidade de comida em sua superfície. Havia guioza em uma quantidade surpreendente, peixes inteiros, macarrão, arroz glutinoso, rolinhos primavera, e dois Niao gao. O cheiro fazia-o sentir o estômago reclamar de fome, mas seguiu Phan e o Sr. Kyn até a sala, onde os outros membros da família já estavam esperando, envolvidos em uma conversa animada, que logo foi silenciada ao perceberem a presença do visitante. Phan parecia estar fazendo o mesmo jogo de Tay (fingindo não perceber o cima estranho) e cumprimentou todos com animação, logo depois os apresentou ao seu colega de apartamento.
— Prima NuLimin Akame. — Akame era uma cabeça mais baixa que Tay e tinha cabelos pretos e compridos, usava uma blusa preta e jeans brancos, ela piscou para Tay. — Essa é a mãe de Akame, tia HuoHong, irmão do meu pai. — Esta era mais baixa que sua filha, com cabelos curtinhos e um rosto em formato de coração, ela foi simpática com Tay, perguntando como ele estava e dando boas vindas a família Kyn, logo depois Phan apresentou o marido — Tio Genji — Um homem de rosto fino e comprido, ele analisou Tay atentamente e logo depois repetiu as palavras da esposa. — Esse é o irmão do meu pai, Yan Yan. — O homem era uma copia alguns anos mais jovem do Sr. Kyn, mas o olhar analítico e gelado que direcionou a Tay era idêntico ao de seu irmão. — Essa é a esposa dele, Daieju. — Esta era alta e esguia, de cabelos compridos em tranças, seu vestido vermelho parecia com da Sra. Kyn, mas havia mais coelhos bordados e também grandes moedas de ouro que cintilavam com a luz das lâmpadas e fez os olhos de Tay arderem rapidamente.
Logo após as apresentações a família voltou a conversar animadamente, incluindo Phan, claro. Tay não se sentiu incomodado por não entender nenhumas lembranças que eles compartilhavam, o mais importante para ele era que Phan estava feliz. Até que…
— Phan, querido. — HuoHong, sentada no sofá, estendeu o braço para o lado e tocou o de Phan, que estava acomodado em uma poltrona. — Jiangkun perguntou muito por vocês nesses últimos meses, repassei o seu telefone para ele, mas fiquei sabendo apenas hoje que você trocou de número! Acredito que ele tenha tentado falar com você muitas vezes.
Jiangkun? Quem diabos era esse? Tay pensou olhando de lado para Phan. O normal nunca havia falado de nenhum Jiangkun!
— Mesmo? Nossa, estou com saudades dele, não nos vemos à anos. Vou lhe repassar meu novo telefone, então pode passar para ele.
— Pode deixar querido, acho que vocês tinha 10 anos a última vez que se viram, não é?
Tay respirou aliviado, a última vez que haviam se visto ainda eram crianças, menos mau. Mas porque esse estranho estava procurando Phan novamente depois de tantos anos?
— Quem é Jiangkun? — Ele engoliu em seco, não esperava que a voz fosse sair tão alta e gelada. Ele deu um sorriso amarelado.
— É o nosso filho. — Genji foi quem respondeu com um sorrisão de pai amoroso enquanto pegava o celular no bolso do blaser e mexia na tela, então virou-a para Tay. A tela exibia um rapaz alto, talvez da mesma altura de Tay, usava uma blusa social branca e calças jeans pretas rasgadas nos joelhos, seus cabelos pretos desciam em mechas onduladas até os ombros, Tay conseguiu ver piercings e nas orelhas e tatuagens pelos braços expostos. Ele estava ficando mais incomodado, Jiangkun era bonito, e aparentemente primo de Phan. — Foi uma grande benção podermos adota-lo.
Mas que merda! Ele não era primo de sangue de Phan! Tay estava apertando as próprias pernas, tentando se controlar para não liberar magia por entre os dedos. O que aquele cara pensava que estava fazendo procurando Phan novamente depois de tantos anos? O que ele queria?
— E onde ele esta? — Perguntou olhando a sua volta, queria conhecer esse rival de perto e derrota-lo o mais rápido possível, talvez joga-lo no Huangpu, fazendo parecer um acidente.
— No Brasil. — Foi a Sra. NuLiming quem respondeu, mas não havia sorriso em seu rosto, ela parecia com muita saudade, era a mesma expressão que os pais de Tay (William e Tiago) exibiram quando o mesmo saiu de casa para morar no apartamento em Xangai. — Foi seguir o grande amor de sua vida, mas infelizmente…
— Não vamos falar do grande bobão Jiangkun. — Akame estalou a língua com impaciência e então piscou para Tay. — Nos fale mais sobre você, King. De onde veio? Estuda na mesma universidade que Phan? Tem namorada?
— Akame! — A mãe a repreendeu, mas olhou com expectativa para Tay.
Por outro lado, ele olhou rapidamente para Phan. Então Phan queria reencontrar esse Jiangkun? Muito bem, ele daria o troco.
— Morei na Tailândia até os meus 6 anos, depois fui embora com meus pais para outro país, então vim para a China para estudar na mesma universidade que Phan, nos conhecemos lá. Não estou namorando, mas estou a procura.
Phan deu-lhe uma cotovelada dolorosa que ele achou saber disfarçar a dor muito bem, sequer piscou, mas a dor estava lá. Ele sorriu para Phan que revirou os olhos para ele.
— Estou com saudades do meu antigo quarto, vou dar uma olhada lá em cima. Tay, porque não vem comigo? — Tay não teve tempo de responder, pois Phan o pegou pelo cotovelo e o guiou escada acima.
Lá em cima, antes que Phan pudesse entrar em seu quarto ele encontrou duas meninas saindo de outra porta, ambas vestindo dourado e laços marfim nos cabelo. Eram as irmãs mais novas de Phan.
— Phan! — Livy correu para abraçar Phan, que se abaixou para abraça-lá.
— Tay! — Len abraçou Tay inesperadamente pela cintura, o arcaniano ficou alguns segundos em choque. Ele não tinha muita experiencia com crianças, mas imitou Phan e se ajoelhou para abraçar Len.
— Então Tay é seu irmão? — Phan fingiu aborrecimento e Len soltou Tay e o abraçou.
— Veio nos chamar? — Livy indagou.
— Não, vim verificar minhas coisas. — Phan respondeu se erguendo e Tay o imitou. — Desçam na frente.
As meninas olharam de Phan para Tay, e então passaram por eles, descendo as escadas. Phan desbotou o sorriso imediatamente e abriu a porta do quarto e acendeu a luz.
— Você está flertando comi minha prima? — Phan indagou ficando de costas para Tay.
— E o que você quer conversar com aquele cara da foto?
— Jiangkun é meu primo, é normal querer conversar com ele.
— Não é seu primo de sangue.
— E o que isso importa? Ele é da minha família e pronto.
— E se ele quiser ser algo mais? — Tay mordeu a parte de dentro da bochecha, não queria revelar coisas demais.
— Não consigo entender onde quer chegar com isso, mas não importa porque Jiangkun está no Brasil, muito longe daqui. Ele foi para lá morar com o amor de sua vida.
— Não importa, ele quer falar com você.
— O que você tem hoje, Tay?
Tay não queria responder. Ele sabia que não deveria sentir nada, pois Phan poderia fazer o que bem entendesse, e o feiticeiro estava tentando se controlar.
— Melhor descermos, sua família quer conversar com você, não se veem a muito tempo. — Ele esboçou um sorriso, pois não queria estragar tudo com um ciúmes idiota.
Por um momento pareceu que Phan iria insistir no assunto, pois ele abriu a boca, mas decidiu pelo contrário, assentiu e então saiu do quarto, apagando a luz ao passar, Tay o seguiu escada abaixo e encontrou todos ainda na sala, o casal Kyn havia se juntado a conversa.
— O que estavam fazendo lá em cima? — O Sr. Kyn perguntou fitando Tay com seriedade.
— Fui ver como estavam minhas coisas. — Phan foi quem respondeu, se sentando no braço da poltrona onde seu pai estava, isso o fez ficar entre o Sr. Kyn e Tay.
— Ja´que estamos todos aqui, vamos para a mesa! — A Sra. Kyn foi a primeira a levantar e sinalizar animadamente para que a seguissem.
Tay sentou-se ao lado de Phan, de frente para a prima Akame, que não parava de encara-lo descaradamente, Tay fingiu não perceber sua presença enquanto Phan lhe passava a louça e talheres. Todos começaram a comer e a conversa não parava, cada um relatando algum momento importante daquele ano, pois como Tay percebeu, os parentes Kyn que havia aparecido naquela noite moravam muito longe e era raro conseguirem unir toda a família.
O feiticeiro ficou intrigado quando Phan começou a contar sobre o seu ano, conseguindo deixar de fora toda a loucura que Tay e seus problemas haviam causado.
— E você Tay, como foi o seu ano e o que espera para esse novo ciclo? — A Sra. Kyn indagou e todos encararam Tay.
— Bem… Este ano foi bem intenso, pois minha vida mudou bastante. Comecei a estudar, sai de casa e conheci Phan, então ele me ajudou a ver o mundo de outra forma e a resolver problemas do passado que voltaram este ano. Para este ano que esta chegando espero que alguém me odeie me perdoe e talvez me dê uma chance de ser algo mais que amigo.
— Tay sentiu vontade de olhar para Phan, mas sabia que se fizesse isso todos poderiam perceber e Phan acabaria em uma situação difícil, então ele só podia torcer para que o outro entendesse que as palavras eram para ele.
Logo depois de Tay foi a vez da Sr. Yan Yan. Então Tay ouviu um zumbido a sua esquerda, ele tentou ignorar a principio, mas o som foi ficando cada vez mais alto, pelas expressões dos outros parecia que apenas Tay estava ouvindo. O som fazia os pequenos pelos da sua nuca se arrepiarem, ele olhou para a esquerda, mas não havia nenhum aparelho que pudesse produzir tal som, provavelmente estivesse vindo lá de fora. Tay estreitou os olhos para tentar ver algo além da escuridão que comprimia as janelas de vidro dos Kyn, então viu algo se ondulando na noite, alguém estava andando pelo jardim da casa. Como feiticeiro, Tay tinha um sexto sentido muito afiado, e agora ele estava em alerta.
— Preciso ir ao banheiro. — Ele sussurrou para Phan. — Onde fica?
— Siga direto por ali e depois vire a esquerda.
Tay assentiu e pediu licença ao se levantar e seguiu pelo caminho que Phan indicou, passando pelo lado das janelas, o feiticeiro verificou se já estava escondido o bastante pela parede do corredor e se aproximou da última janela, o vidro estava um pouco aberto, deixando neve entrar na casa. Provavelmente os Kyn esqueceram de fechar, ponderou. E quando se aproximou para fecha-lá, percebeu que havia algo na fina camada de neve no chão, o feiticeiro se abaixou e percebeu que era pegadas de patas pequenas com três dedos. Um animal entrou na casa!
Imediatamente, seguido por esse pensamento, o arcaniano ouviu um barulho no banheiro. A porta estava aberta, a luz do corredor jogava um fraco brilho ali dentro, Tay acendeu a luz, entrou e fechou a porta, precisava garantir que o animal não escapasse. O zumbido em seus ouvidos ficou mais alto, ele tentou usar magia para abafar o som, mas percebeu que o barulho estava tirando sua concentração para conseguir produzir qualquer resultado eficiente, o que era um grande risco, pois ele poderia acabar mutilando as orelhas.
Um som de algo afiado raspando superfície foi ouvida detrás da cortina de plástico do box de vidro. Tay se aproximou e abriu uma fresta entre a cortina e a folha de vidro e soltou um palavrão mental. Era um filhote de Nian. Essas feras tinham o costume de morar no mar e sair uma vez por ano para devorar pessoas que produziam muito barulho ou que decoravam ou usavam vermelho. Pelos deuses arcanianos, havia muito vermelho naquela casa! O feiticeiro pensou alarmado enquanto a criatura percebia sua presença.
O filhote de Nian parecia um filhote de tigre, só que sua pelagem era verde com pequenas penas avermelhadas, seus dentes caninos eram grandes o bastante para surgir por entre os lábios finos e pretos, seus chifres brancos ainda eram pequenos, mas pontudos e os olhos estreitos e amarelados estavam fixos em Tay. Suas pequenas garras afiadas pararam de arranhar o azulejo branco e começou a soltar um barulho baixinho que vinha no centro do seu peito, se fosse adulto certamente seria um rugido.
Havia um motivo para Tay ouvir o zumbido que desequilibrava sua magia e também para a fera rosnar para ele. Nians odiavam feiticeiros!
Uma lenda antiga de Arcanos contava que os Nian eram decendentes de um antigo deus do mar que teve o coração partido por uma feiticeira, logo após isso essa antiga divindade entrou em um eterno sono de desolação no lugar mais profundo do oceano, e isso foi o bastante para suas crias adquirirem um ódio profundo por feiticeiros.
Tay deu alguns passos para trás, normalmente ele usaria magia para se defender ou salvar a criatura, mas o zumbido causado por Nians tinham efeito perigoso na magia dos feiticeiros em especifico.
— Calma ai, amigão. — Tay ergueu as mãos na altura do peito em sinal de rendição, a criatura se aproximou lentamente dele, rasgando a cortina ao passar, seu corpo tombou para fora do box, mas os olhos jamais deixaram Tay. — Como diabos você entrou aqui?
O Nian soltou um grito fino, Tay tampou os ouvidos e então sentiu as garras da criatura rasgando a barra de sua calça e sua pele por baixo. Ele se afastou, a criatura estava tendo um pouco de dificuldade em correr pelo piso liso, as garras arranhando e escorregando. Tay tentou produzir uma gaiola magica, mas como esperado sua magia não conseguia obedecê-lo direito e produziu um raio que caiu ao lado da criatura, fazendo uma manchada de queimado. O Nian parou de repente e olhou da mancha para Tay, o arcaniano abriu a boca para pedir desculpa, mas a criatura contraiu as patas e então saltou. Ela acertou bem no ponto entre as pernas do feiticeiro que soltou um grito e tentou se livrar da criatura que subiu por suas roupas. O Nian já estava na altura do seu peito quando ele conseguiu pega-lo pelas laterais e afasta-lo de si.
A criatura magica se contorcia em suas mãos, as garrafas se agitando no ar, a boca aberta mostrando pequenos dentes que na fase adulta seriam capazes de partir alguém ao meio com facilidade.
— Tay? Tudo bem ai? Ouvi gritos. — Era Phan, a voz abafada pela porta.
Tay olhou da porta para o animal, que agora estava imóvel, os olhos cintilando, como se estivesse entendendo a situação. Então ele soltou um berro alto novamente e começou a se agitar, Tay precisou solta-lo para cobrir os ouvidos e a criatura aproveitou para escapar, saltando e girando a maçaneta, a porta se abriu e ele fugiu. Tay ouviu um grito de surpresa de Phan e correu para fora.
— O que era aquilo? — O normal estava com os olhos arregalados.
— Ele te machucou? — Phan fez que não com a cabeça. — Preciso tirar aquele Nian daqui, para onde ele foi?
Mas não foi preciso Phan responder, pois naquele momento gritos se elevaram da sala.
— Fique aqui, pode ser perigoso.
Então o feiticeiro correu para a sala e encontrou uma cena de caos. O Nian estava fatiando as almofadas do sofá, que eram vermelhas. A família Kyn olhava assustada para a criatura, mas como eles não tinham a mente desbloqueada para ver o mundo Arcanos e suas criaturas eles certamente estavam vendo outro animal. Livy e Len estavam em cima das cadeiras.
O Nian viu Tay e então saltou para cima dele, Tay conseguiu pega-lo no ar, as garras da criatura se agitando a centímetros do seu rosto.
— Cuidado com esse cachorro Tay! — A Sra. Kyn gritou.
Então eles estavam vendo um cachorro, Tay pensou. Ele precisava se livrar daquela coisa, pois os normais estavam usando vermelho e mesmo que as garras daquele Nian filhote fossem pequenas poderiam fazer um bom estrago.
— Vou leva-lo para fora. Alguém abre a porta! — O Nian, como vingança por ter sido capturado começou a soltar uma baba esverdeado que pingava para todo o lado e melava as mãos de Tay. — Ah, seu porco!
Phan passou correndo por Tay e abriu a porta da frente. Tay correu para fora, ansioso para se livrar daquela coisa, ao passar Phan saiu com ele e gritou para seus parentes não sairem e fechou a porta.
O frio da noite pegou Tay com tudo, mas ele não largou a criatura. Luz dourada vazou para o jardim, um sinal claro de que os Kyn havia aberto as cortinas da sala e estavam espiando pela janela.
— Preciso prende-lo em algum lugar e enviar uma mensagem para a Casa de Xangai para virem busca-lo.
— Não pode leva-lo você mesmo? — Phan, que podia ver o mundo Arcanos, graças Tay, analisou a criatura de longe com o nariz franzido. — Porque ele esta babando tanto?
— Ele é vingativo. — O Nian gruiu algo em uma língua desconhecida para Tay, mas provavelmente era algum insulto. — Seus pais tem alguma coisa que sirva de gaiola para garras afiadas?
Phan ergueu as sobrancelhas para o feiticeiro, aquela era um resposta. Tay estava começando a pensar que teria de ir a pé até a Casa de Xangai, que era em outro distrito, quando uma risada reverberou pela noite.
Tay e Phan se viraram para a esquerda.
— Elisabeth? — Ambos indagaram em igual descrença.
Elisabeth Bathory era uma vampira de cabelos rosa e olhos vermelhos. Uma amiga de Tay e também antiga ficante, aparentemente Elisabeth havia ficado profundamente ressentida após Tay dar um fim na relação confusa deles.
— O que faz aqui? — Tay indagou estreitando os olhos, mas não precisava nem fazer aquela pergunta, ele já sabia a resposta.
— Nada demais, estava entediada e decidi ver como os normais se divertiam na noite de ano novo. — Ela exibia o mesmo sorriso debochado.
Dentro de um vestido curto e preto, usando botas de cano alto, até os joelhos, ela não parecia sentir frio. No passado, Tay compartilhava o mesmo ódio por normais que Elisabeth, e isso os havia unido, mas desde que Tay conheceu Phan, ele passou a perceber o quão toxico era aquele tipo de relação.
— Foi você que soltou o Nian dentro da casa? — Tay indagou seriamente. — O que diabos deu em você? E como soube que eu estava aqui?
Elisabeth se aproximou lentamente dele e pegou o Nian de suas mãos. A criatura não tentou ataca-lá.
— O Tay que eu conhecia acharia isso bem divertido. E eu soube que estava aqui porque ouvi a sua conversa com seus amigos na escadaria da Rhaverlly, estavam tão concentrados no próprio mundinho que sequer me viram. Precisam ser mais cuidadosos, sabia?
— Você conhecia outra Tay, eu sou uma versão melhorada. — Tay desdenhou enquanto arrumava as próprias roupas amarrotadas.
— O que pensa que esta fazendo aqui com esses normais?
— Ei! São minha família! — Phan exclamou indignado, mas a vampira apenas produziu um som de desdém.
— Melhor você ir embora. — Tay deu um passo para o lado para ficar entre Phan e a vampira. — Se for agora não vou informar a Tríade o que fez aqui hoje.
Elisabeth fez um muxoxo de brincadeira.
— Tay, isso nunca vai dar certo. — Tay conhecia Elisabeth bem o bastante para saber que ela estava se referindo ao seu sentimento por Phan.
— Vai embora. — Tay indicou o portão entreaberto.
A vampira apenas assentiu, com um sorriso ainda sarcástico no rosto, foi embora, sumindo por entre o nevoeiro que agora estava ficando mais ralo.
Tay se virou para Phan.
— Eu sinto muito por isso.
— A culpa não foi sua, a Elisabeth é que queria provocar o caos. — Phan se aproximou dele um passo, ficando próximos assim Tay conseguia sentir o cheiro do perfume de Phan.
— Mas ela fez isso porque aceitei o convite.
Phan olhou para o lado e Tay seguiu seu olhar. Os Kyn ainda estavam amontoados na janela, quando voltassem para dentro, caso Phan ainda deixasse que ele voltasse para a comemoração, Tay diria que Elisabeth era a dona do cachorro que eles haviam visto. Phan fez um sinal para eles se afastarem e assim fizeram, mas o Sr. Kyn e o irmão foram os últimos, lançando olhares idênticos e acusadores em direção a Tay antes de fecharem as cortinas.
— Tay, não pode carregar a culpa de outra pessoa. Elisabeth fez isso porque é má, não porque você estava aqui.
— Você não entende, acho que ela se sente traída porque a deixei e não compartilho mais o ódio por normais como ela. — Tay suspirou pesadamente, havia ficado todo preocupado em não estragar a noite e acabou fazendo isso apenas por ter aparecido ali.
— E isso não é culpa sua. Elisabeth decidiu continuar seu ódio por normais mesmo você o superando, ela fez isso hoje porque queria causar o caos como sempre faz.
Tay sentiu o coração apertando. Ele olhou novamente para a casa, só para ter certeza de que não estavam sendo observados, então se aproximou mais de Phan.
— Sua bondade me deixa chocado, sabia?
— Não é bondade, apenas um fato. — Apesar de Phan ter dado de ombros, o seu rosto corou.
Tay tocou a base do seu pescoço, apesar do frio a sua pele ainda estava quente.
— Obrigado, mas se quiser posso voltar para o apartamento, e assim garantir que aquela maluca não volte aqui de novo.
— Não quero que volte. — Phan pegou a sua mão que estava no pescoço, os dedos entrelaçados causavam ondas de calor pelo corpo de feiticeiro. — Por favor, não vá.
— Eu não vou, não quero ficar naquele apartamento sem você.
— Ei! Entrem ou vão congelar! — Era o Sr. Kyn que havia aberto a porta rapidamente.
— Vamos iniciar um novo ano juntos. — Phan sussurrou antes de voltar para dentro de casa, Tay ficou absorvendo as palavras com uma alegria avassaladora o dominando, mas teve de correr para entrar, pois o Sr. Kyn estava prestes a fechar a porta.
